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Thursday, November 16, 2006

O Professor Novo

Mamãe chegou outro dia com uns filmes, disse que seria bom fazermos algum programa em família. Eu e Hobbes concordamos que passar algum tempo com ela seria bom. O problema é que mamãe não sabe escolher filmes. Ela deve ter pensado que me agradaria a sua escolha do bobo Sahara. Acontece que o filme é tão tolo que até pra mim é tolo.

Vamos lá, não é muito difícil agradar aos garotos. Tudo que se espera é um pouco de lutas, com muita violência e algumas pessoas se dando mal, para que possamos nos divertir sem culpa com a tragédia dos outros. Tá, Sahara até tem isso, mas é um grande e bobo amontoado de clichês indigerível até para um tigre selvagem.

Fiquei até imaginando como deve ter sido escrito o roteiro de um filme assim, sabe. Um filme tão tolo.

***

Uma vez, na Escola dos Grandes Diretores, chegou um professor novo. Era daquele tipo que não segue as regras do bom professorado e deixa todo mundo perplexo pela falta de ortodoxia. Ainda mais sendo na Escola dos Grandes Diretores, onde ser ortodoxo era o mesmo que ser correto. Ou, pelo menos, foi isso que todos sempre pensaram.

Mas, por algum motivo, o Conselho que Contrata Professores Novos achou que era hora de inovar e dar uma faceta mais jovem à Escola. Ela estava em evidente decadência, e é nessas horas que uma mudança de postura é necessária. Vai ver foi por isso que chamaram de muito longe aquele professor, que chegou trazendo na mala apenas duas camisas e duas calças. O resto ele compraria por ali mesmo que era para iniciar uma nova vida.

Material didático mesmo ele não tinha. Nem cadernos nem livros. Gostava de repetir que tudo que possui “está aqui ó” – e ao dizer isso ele dava duas cutucadinhas na cabeça com o dedo indicador. Gostava de dizer umas tantas outras coisas, como a vantagem de se usar meias coloridas em dias de sol, mas era a sua competência com as palavras que mais chamava a atenção. Por isso todos diziam que ele era de algum país latino. Não que isso tivesse qualquer fundamento.

Depois de comprar umas camisas novas, uma das quais tinha um I, um coração sinuoso, um N e um Y, ele foi dar a sua primeira aula, mas usando obviamente a camisa cinza de linho, que deveria dar a ele um ar de seriedade, desabotoada na última casa, porque, sempre um pouco atrasado, era sintomático que ele deixasse de abotoar todas elas. Material para a aula ele só trazia algumas folhas foto-copiadas de um roteiro que ele mesmo havia escrito na noite anterior.

- Vocês têm em mãos o Roteiro a Ser Evitado.

Como resposta ao silêncio da turma, disse:

- Tudo que vocês devem fazer é evitá-lo. Leiam.

E ao dizer isso, o professor deu as costas à classe e saiu pela porta, deixando um silêncio excruciante atrás de si. Os alunos estranharam todos o novo e revolucionário método de aula, que não tinha slides, livros respeitavelmente grandes, e muita falação, mas iniciada a leitura do Roteiro a Ser Evitado ficaram de tal forma imersos que nem se chatearam pelas duas horas em que o professor deveria dar sua aula, e em vez disso, abandonara-os após dizer poucas palavras.

O professor, com sua camisa cinza de linho, após sua grande primeira aula andou triunfante pelo longo corredor da Escola dos Grandes Diretores. Desenhou ao canto da boca um pequeno sorriso de contentação e pensou consigo que “estava feito”.

Por todo o semestre, o professor reproduziu o mesmo modelo básico de aulas. Dificilmente o mestre ficava mais que 10 minutos com a turma. Isso, claro, fez com que ele não fosse dos professores mais cultuados pelos alunos, com os quais não tinha muito tempo para criar laços.

Resultado dessa distância foi que toda uma mitologia se criou ao redor da figura quase esquálida do professor, que após o primeiro mês de aula decidiu que devia mesmo abandonar sua camisa de linho cinza e ostentar seu modelito I Love New York não só em casa.

- Dizem que ele é um hacker que se finge de professor.
- Um hacker, sim. Parece que veio pra cá depois que causou um rombo na Receita Federal.
- Mas o que isso tem a ver?
- Não me pergunte.

- Não passa de um turista.

- Dizem que leu a Bíblia em um dia.
- A Bíblia em um dia?
- E Os Lusíadas em 15 horas.

Mas de uma coisa nenhum desinformado dava cabo: apesar de seus métodos estranhos, aquele realmente era um grande professor. E sozinho foi mudando aos poucos o jeito de se dar aula na Escola dos Grandes Diretores. Por influência sua, dali começaram a sair os maiores diretores de Hollywood. Steven Spielberg era um deles. E ele, como todos sabem, fez ET, O Extraterrestre. O mundo havia derramado lágrimas diante de um ET bonzinho e so human, enquanto o resto dos diretores do mundo se preocupava em pintá-los como tiranos sanguinários. E isso era só uma amostra do que causou o professor novo.

Agora ele já não era mistificado pelos alunos, tampouco pelos outros professores. Depois de ET, feito por um aluno seu, as coisas haviam mudado. Os métodos pouco conservadores do professor haviam se configurado no verdadeiro regime didático dentro da Escola dos Grandes Professores. Os professores todos vestiam agora camisas de I Love New York. E ninguém mais se preocupava se o professor era latino, asiático ou algum serial killer. A sua origem, aliás, nunca foi esclarecida, e por isso alguns grupos alternativos juravam que ele era um alienígena achado na Área 51.

Todavia, o maior passo do professor dentro daquela escola haveria de se configurar no fato que o lançaria para sempre na sarjeta da culpa, e logo do esquecimento. Tudo porque em sua primeira classe o professor novo tinha um aluno que se chamava Thomas Dean Donnelly. Todos o chamavam de Dindon – um trocadilho com o seu sobrenome Dean Donn, e uma brincadeira com o fato de que Thomas não se dava bem com o despertador. Em verdade, era um garoto prolixo que vivia dormindo. Em casa, na aula, na lanchonete com os amigos, sempre dormindo. Estava dormindo o Dindon no dia da sua primeira aula com o professor novo.

Por conta disso, ele não havia escutado aquelas frases que até hoje ecoavam orgulhosamente na mente da primeira turma que teve o privilégio das aulas do professor novo. Eles podiam recitar cantarolando. “Vocês têm em mãos o Roteiro a Ser Evitado”. Dançando até. “Tudo que vocês devem fazer é evitá-lo”. E divertiam-se: “Leiam”!

Dindon dormia e por isso Dindon não leu. E ele era daqueles alunos que só se formam porque Deus definitivamente é um cara bonzinho. Depois de formado, Dindon só sabia que deveria fazer um filme. Um filme qualquer, e isso era tudo. Depois de muito pensar, o que não demorou muito, Dindon foi até o seu armário atrás de algumas idéias, e achou algumas folhas, as folhas foto-copiadas do Roteiro a Ser Evitado. Ele leu aquele texto e ficou maravilhado, bobo até. Obviamente havia uma boa razão para ser evitado, como por exemplo o fato de ser o supra sumo dos clichês, mas Dindon era muito desatento para perceber isso.

Ele estava convicto, seria aquele seu primeiro filme. Então, Dindon mudou o nome para algo mais bonito. Se chamaria Sahara e teria uns rostinhos bonitos como o de Penélope Cruz. Foi assim. Tudo simples. E Thomas Dean Donelly finalmente tinha em mãos o seu primeiro longa metragem.

Quando reconheceu o seu Roteiro a Ser Evitado, e ainda sendo lançado com estardalhaço, o professor novo se ressentiu de uma culpa inexplicável. Aquilo nunca poderia acontecer, jamais o Cinema poderia ter algo tão pífio como aquele filme, porque afinal ele deveria ser evitado para sempre. Não poderia, jamais. Mas aconteceu. E foi o bastante para que o professor abandonasse sua carreira brilhante. Foi o suficiente para que alguns anos depois ele virasse só mais uma lenda dentro da Escola dos Grandes Diretores.

O Roteiro a Ser Evitado não havia sido evitado. Era o fim.

***

Ou pelo menos foi isso que imaginei quando vi esse filme tão tolo.

2 comments:

Anonymous said...

Muito boa a imaginação deste menino. Se continuar assim, nao duvido que em pouco tempo o mundo estará correndo atras de litros de Calvin-Cola. Ou talvez Hobbes-Cola.

;D

André "Lagosta" said...

Filho da puta genial.